PROPRIEDADE INTELECTUAL
Pirataria Ching-ling – Folha visita reduto de fábricas clandestinas na China que exportam Havaianas e Melissas falsas para todo o mundo
(Folha de São Paulo 19.09.2010 Mercado – p. B8)
FABIANO MAISONNAVE
ENVIADO ESPECIAL À PROVÍNCIA DE FUJIAN (CHINA)
As sandálias não se deformam, não soltam tiras e não têm cheiro. Mas essas Havaianas não são as legítimas.
São as da empresa chinesa Bright Coast, que mantém um site “oficial” da marca em inglês e chinês, pode produzir até 500 mil pares mensais e exporta um dos produtos-símbolo do Brasil para a África e o Oriente Médio.
“Só não conseguimos ainda reproduzir a lista lateral reta”, admite o funcionário da Bright Coast, no amplo escritório da empresa em Xiamen, sul da China, ao mostrar vários modelos de Havaianas falsas.
A Bright Coast é só uma das dezenas -provavelmente centenas- de fábricas no sul da China que, nos últimos anos, diversificaram de nomes mais famosos, como Nike, e agora produzem também imitações das brasileiras Melissa, Ipanema e Mormaii, além das Havaianas.
A reportagem da Folha se apresentou como compradora de marcas brasileiras piratas em quatro cidades da Província de Fujian. Encontrou uma ampla cadeia produtiva, que envolve de grandes empresas legalizadas a pequenas fábricas familiares, dezenas de milhares de funcionários e um sistema sofisticado de venda para praticamente qualquer parte do mundo. Tudo com certa conivência oficial.
Entre as brasileiras, a mais copiada são as Havaianas. Na Bright Coast, as sandálias vêm em embalagem e, numa etiqueta com holograma, se lê: “Apenas as legítimas Havaianas têm este selo de autenticidade. Não seja enganado por cópias”.
O preço por unidade é de 8 yuans, o equivalente a R$ 2, incluindo a tramitação pelo porto de Guangzhou, o mais fácil para passar pirataria. O valor é um décimo do cobrado no site oficial das Havaianas verdadeiras pelo mesmo modelo.O negócio é feito de forma aberta. No site, há uma breve explicação da história das Havaianas e até fotografias da fábrica. O dono, Liao Gui Long, controla uma firma de eventos e é o vice-presidente da associação de empresas de propaganda de Xiamen.
A Bright Coast tem rivais. Cópias mais baratas e menos sofisticadas são facilmente encontradas nas dezenas de lojas de fábrica em Jinjiang -vizinha a Xiamen. Em apenas uma hora, a reportagem encontrou cópias de Havaianas e Ipanema em seis lojas. Em uma delas, a vendedora oferece cópia em PVC das Havaianas, no atacado, por 6 yuans (R$ 1,50). Seu mercado, diz, são as Filipinas, para onde exporta alguns milhares todos os meses. “É um país quente, e essas sandálias duram três meses.” Qual é capacidade de produção mensal? “Milhões”, e sorri.
Internet facilita a divulgação de itens falsificados
DO ENVIADO À PROVÍNCIA DE FUJIAN
Maior site da China em vendas no atacado, o Alibaba.com é sinônimo de sucesso e credibilidade: tem o Yahoo! como sócio minoritário (40%), e o seu fundador, Jack Ma, recebeu a visita do governador do Estado da Califórnia, Arnold Schwarzenegger, no início deste mês.
É ali que as fábricas de sapatos piratas encontraram a plataforma ideal para as vendas de seus produtos. Na semana retrasada, a reportagem fingiu interesse em comprar sandálias da marca Melissa para vender ao Egito.Conseguiu negociar, por meio de um chat do site, 5.000 pares com a Guohao Shoes, a R$ 15 cada par, incluindo o frete. Garantiram a entrega em até sete dias. Tudo em 20 minutos. A reportagem visitou a fábrica Xingao, que tem um link do Alibaba.com no seu endereço virtual. A unidade, de quatro andares, está num bairro pobre em Jinjiang.
“Do Brasil, fazemos Mormaii [marca de roupas e acessórios]. Acabamos de enviar 100 mil desses pares para o Chile”, diz um funcionário, com uma sandália na mão.
Jack Ma tem ainda o Taobao.com, o maior site de varejo, com 200 milhões de usuários. Somente de Havaianas, havia, duas semanas atrás, 7.876 vendedores, a maioria de cópias piratas. Procurado, o Alibaba.com disse que apenas promove o intercâmbio entre os compradores e os vendedores, sem representar nenhum dos lados. (FM)
Orçamento de calçado pirata sai em 3 dias – Reportagem da Folha faz visita a fábrica chinesa que promete produzir por R$ 4 Melissa que é vendida no Brasil por R$ 70
(Folha de São Paulo 19.09.2010 Mercado – p. B9)
É tão grande a demanda na cidade chinesa campeã da pirataria de calçados que há falta de trabalhadores
DO ENVIADO A PUTIAN
De sombrinha contra o sol quente, a empresária Zhong me espera na estação de trem de Putian, provavelmente o maior centro produtor mundial de calçados piratas. Pauta do encontro, marcado por meio de anúncio na internet: comprar 6.000 pares de Melissas falsas.
Entramos num carro de placas pretas, indicando que pertence a um estrangeiro -a empresa tem sede nos EUA. Vamos a um escritório em um prédio residencial de classe média baixa. Ali, dois técnicos nos esperam.
Tiro da mochila três pares da Melissa original, dois modelos baixos e um de salto alto. Explico que quero o mais parecido possível, inclusive o cheiro doce do plástico. “Nós já fabricamos esses dois”, diz um deles. “Mas será preciso fazer um molde para o de salto alto, e isso custa 5.000 yuans [R$1.272].” Eles prometem um orçamento inicial em até três dias.
A reunião termina. Zhong, com simpatia de vendedora, convida a jantar e a conhecer o comércio de sapatos falsos.
Vamos a um restaurante. Em meio a oito pratos diferentes, conta que Putian, de quase 3 milhões de pessoas, virou uma grande fábrica de sapatos depois que uma unidade da Nike (original) se instalou, há duas décadas.
Rapidamente, conta, os tênis Nike passaram ser produzidos a partir de desenhos originais roubados. “Houve uma época em que havia uma fábrica no fundo de todas as casas aqui.” Hoje, a produção está mais espalhada e há fábricas de grande porte -a que ela representa tem mil funcionários.
A demanda é tão grande que faltam trabalhadores. O salário saltou de R$ 356, no ano passado, para R$ 460, por uma jornada de dez horas, com quatro folgas mensais e duas refeições diárias, sem férias.
Depois vamos para a rua dos Estudantes. São dezenas de lojas de fábricas. O local só abre à noite, em razão do horário na Europa e nos EUA, origem da demanda.
Os clientes são pequenos revendedores de sapatos falsos. Eles recebem o pedido via internet e, após o pagamento on-line, vão às lojas comprar, geralmente um par. No dia seguinte, despacham.
Geralmente, a venda é feita por famílias, que faturam em média R$ 1.300 mensais. Zhong conta que a produção e a comercialização são feitas sem maiores problemas, mas que é preciso subornar policiais.
Após três dias, chega o orçamento. O par da sandália sai por R$ 3,8, incluindo uma caixa igual à original (no site da Melissa, custa R$ 69,90). Capacidade de produção: 2.000 pares/dia. Com o cheiro, o pedido mínimo é de 100 mil unidades. Hora de cancelar o negócio. (FM)
Brasileiros flagram falsários em feiras globais
ENVIADO À PROVÍNCIA DE FUJIAN
Ousada, a pirataria chinesa já foi flagrada duas vezes pela Grendene, fabricante da Melissa, em reputadas feiras tentando se passar pela marca. O primeiro caso ocorreu na feira GDS, na cidade alemã de Düsseldorf, em 2009. Em agosto, outra chinesa tentou se apresentar como Melissa na feira WSA, em Las Vegas, nos EUA.
A Grendene conseguiu fechar os estandes. Porém a Folha apurou que uma das empresas ainda vende Melissas falsas na China.
As reações das vítimas de falsificação são diversas. Há casos em que preferem não agir, para evitar a desconfiança entre os consumidores sobre a marca. Em outros, procuram o governo chinês, em vez de acionar o pouco confiável Judiciário.
Para o diretor de relações institucionais da Grendene, Francisco Schmitt, às vezes, a escala é pequena para justificar uma ação legal. O executivo afirma que a internet virou aliada da pirataria, mas que o problema ainda é pequeno. Só a Grendene produziu 166 milhões de pares em 2009. Os produtos copiados, afirma, representam de 10% a 15% do consumo mundial.
A secretária-executiva do Conselho Nacional de Combate à Pirataria do Ministério da Justiça, Ana Lúcia Soares, disse que o organismo nunca foi acionado por causa da pirataria chinesa. Ela lembrou que os dois países criaram, em 2009, um mecanismo bilateral de consulta sobre propriedade intelectual, que pode ser usado pelas empresas.
As Havaianas não comentaram o problema. (FM)